Isabel I de Inglaterra, pouco tempo depois de ascender ao trono, ordenou purgas de católicos por todo o Reino. Ao contrário da sua predecessora católica que o havia feito contra os protestantes, Isabel I não o fez por facciosismo, fê-lo por razões de estado. Após concluir o projecto do seu pai e libertar Londres da dependência de Roma, Isabel decidiu não casar e declarar-se a monarca virgem, dando aos Ingleses um novo santo, um santo contemporâneo e nacional.
Com o crescimento gradual da componente social dos vários aparelhos Estado um pouco por todo o mundo, os líderes são cada vez menos vistos como políticos – na acepção clássica do termo, L’État n’est pas moi…
Ao longo de toda a História, os líderes eram vistos como o centro dos assuntos de Estado. Para eles fluíam as receitas fiscais e deles derivava a iniciativa para os projectos nacionais. Com a consolidação do estado ocidental, soberano e burocrático, os líderes perderam esta centralidade no processo político.
A dramática ascensão económica que a Europa e o ocidente sofreram no século XIX graças à sua posição na vanguarda das descobertas tecnológicas e da evolução produtiva possibilitou também que vários governos pela Europa fora pudessem dedicar recursos financeiros à saúde pública e à educação. Simultaneamente, desde a revolução industrial que tem havido uma vontade de profissionalizar as forças armadas de modo a permitir que a população nacional se possa dedicar exclusivamente ao processo produtivo.
Mas consequências houve que acabaram por se revelar contra-producentes. Uma vez que as populações passaram a deter cidadania e com esta, privilégios de nascimento e direito à integridade física (segurança individual e salvaguarda em relação à violência bélica), se é verdade que a classe média melhorou o standard das condições de vida, também é verdade que as burocracias estatais acabaram sobrecarregadas com despesas que nunca antes haviam tido de gerir. As guerras por seu lado, passaram a ser vistas como prerrogativas elitistas e pouco relacionadas com o bem-estar das populações. O Estado científico ocidental de índole liberal exige pouco dos seus cidadãos constituintes e oferece muito.
No processo político democrático dos dias de hoje, os partidos dividem-se entre aqueles que defendem os interesses da classe média alta e os que representam as classes baixas. O chamado ‘centro’ que todos os partidos disputam - numa tentativa de lograr uma maioria eleitoral - é constituído pela classe média-baixa, a mesma que há um século atrás estava na pobreza e que é hoje remediada.
Neste contexto, a dinâmica política favorece a centralização do Estado numa crescente tentativa de assegurar recursos fiscais que assegurem a manutenção do Estado-social, i.e. saúde e educação pois são estes os sectores que hoje absorvem a maior parte dos recursos do orçamento de Estado. Por conseguinte, decorre naturalmente que numa sociedade de Estado-providência, os líderes políticos sejam perspectivados como assistentes sociais. À direita e nos partidos que defendem os interesses da classe média alta, os líderes querem-se como gestores mas a conquista do centro – ou seja do voto da classe média-baixa – obriga ainda assim ao discurso da assistência social, dos ‘candidatos do povo’. Sobretudo em países como Portugal aonde a classe média baixa impera.
Mas este ónus da assistência social deturpa a função do ‘líder’ do ‘político’ clássico, daquele que tem por função velar pelos interesses de Estado; do Estadista.
Assim se explica o endividamento incontrolável das repúblicas europeias (comportamento de nouveau riche da parte de estados pouco abastados), assim se explica a política externa guiada por valores caridosos e em detrimento de interesses nacionais, assim se explica o delapidar dos orçamentos da defesa e dos serviços de informações, assim se explica as incompatíveis reformas e políticas de diferentes partidos, consoante os interesses que defendem.
O sistema democrático é sustentável em estados aonde a consciência cívica impede divisões de maior em questões de interesse nacional. Não são frequentes as revoluções na Escandinávia ou nos países anglófonos. O mesmo não se passa em Portugal aonde um século de república implica já três regimes diferentes e um quarto no horizonte.
Aonde está a nossa Isabel I? Aonde está o caminho próprio e nacional?
Parte do futuro debate constitucional terá que ser a viabilidade de importarmos regras democráticas inadaptáveis à nossa realidade social.
Um texto do convidado Miguel Nunes Silva, co-autor no Psicolaranja e formado em Relações Internacionais pelo ISCSP